Abrindo as cortinas

André Carvalheira do Nascimento

Na casa Brasil, na rua da América do Sul, existe um quarto abandonado e trancado, com cortinas pretas como a noite impedindo a entrada de qualquer raio de sol. Por baixo da porta sai um cheiro podre de sangue velho e lágrimas. Desde a primeira idade olho para essa porta cada vez mais empoeirada nos fundos da casa. Dizem que antigamente se trancavam escravos lá. Mas não se diz muita coisa, apesar de essa sombra pairar sobre toda casa. Pelos meus pais e seus amigos, alguma coisa na imprensa, pelo livro Brasil Nunca Mais, com relatos-denúncia de torturados – que não consegui ler todo por medo – fui aos poucos descobrindo as frestas abertas nas portas e cortinas e ouvindo os gritos tão abafados. Como roupas mofadas dentro de baús úmidos e proibidos.

Meus pais conseguiram fugir do Brasil antes do massacre da era Médici (1969-1974). O que se fala no país hoje? A distância entre os jovens e adultos que viveram naquela época e os que nasceram durante ou depois ficou clara. Entre os de minha geração e mais novos nada se sabe ou tudo parece ficção distante no tempo.

A justiça ainda não foi feita. Comemoremos a Anistia e divulguemos a memória para que as gerações que seguiram e seguirão não esqueçam. Uma sociedade é justa e livre quanto mais reconhece seus erros. Tudo isso somos nós. O sangue, a lágrima, o esquecimento, mas também a revolta e a vontade de justiça.

 

Jornal da Cidadania – agosto de 1999.