Memórias dos filhos do exílio

 

Até completar oito anos, Cecília Leite Marquez pensava que português era língua de índios e que o lugar onde sua mãe nasceu, o Brasil, era uma ilha cheia de cobras e animais selvagens andando no meio da rua. Tudo mudou quando a mãe, a advogada Lenísia Leite Sobeslavsky, foi anistiada e pôde retornar ao Recife. O frio, os parques, os castelos e a tranqüilidade de Praga, na Tchecoslováquia, ficaram na memória da menina Cecília, que, aos 28 anos, está perto de concluir o curso de Psicologia na UFPE.

"Imagine que nós saímos da Europa com seis graus abaixo de zero e chegamos aqui com 30 positivos", recorda Lenísia, que se formou em Direito na Europa e só conseguiu que seu diploma fosse aceito pela UFPE depois de seis anos. Antes de adaptar-se à nova pátria, Cecília sofreu bastante. Além do calor, a garota não conseguia comer feijão sem ter diarréia e, na primeira vez que viu um mendigo - algo impensável no Leste Europeu na década de 70 - teve uma reação surpreendente. "Toda vez que alguém aparecia na casa da minha avó pedindo comida, eu mandava entrar e oferecia tudo que tivesse na geladeira", recorda a bem-humorada Cecília.

Já para o médico e escritor Luiz Cláudio Arraes, caçula do primeiro casamento do ex-governador Miguel Arraes, a pior parte do exílio foi a ida para a Argélia. Na época, ele tinha 10 anos e nem sabia da existência daquele país africano. "Hoje acho que foi uma experiência importante, riquíssima. Mas, na época foi terrível. Lembro que o pior momento foi quando a embaixada brasileira confiscou os passaportes de toda família", conta Luiz.

Superados os problemas da infância, ele aproveitou as facilidades de estudar numa escola francesa em Argel, capital do país, e chegou a iniciar um curso de Medicina em Paris. "Mas aí decidi que meu lugar era aqui no Brasil mesmo. O problema é que tive de recomeçar o curso do zero. Depois fiz meu mestrado lá em Paris", explica Luiz.

EDNALDO - "Se fosse pela vontade de minha mãe, nós tínhamos ficado na França. Mas painho tinha contas a acertar aqui em Recife e precisava retornar para provar sua inocência", conta a estudante de Psicologia Emília Miranda, 22 anos. Seu pai, o engenheiro Ednaldo Miranda, saiu do país sendo acusado de ter colocado a bomba que matou duas pessoas no aeroporto dos Guararapes, em 1969. Morreu de câncer, em abril de 1997, sem conseguir a revisão do processo judicial que o condenou.

Meses depois da morte do marido, a socióloga Lucila Bezerra decidiu que era hora de voltar à França para que os filhos pudessem conhecer o cenário do exílio da família. "Foi muita emoção. Acho que painho e mainha viveram felizes lá", diz Emília, que veio para o Brasil com apenas dois anos.

MORTE - Poucas histórias do exílio são tão trágicas quanto a vivida pela pintora Tereza Costa Rego, dona de um atelier na rua do Amparo, em Olinda. Casada com o comunista Diógenes de Arruda Câmara, a mais importante liderança política do PC do B, teve de acompanhá-lo no exílio na Europa, onde ele ajudou a reorganizar o Partido Comunista Português. Ao lado do marido testemunhoua Revolução Cultural, na China, e a queda da ditadura de Salazar, em Portugal.

O pior estava reservado para o retorno, marcado para 23 de novembro de 1979, quando ele seria recebido com festa pela militância no aeroporto de Congonhas. Não houve tempo: Diógenes desceu as escadas do avião, entrou no saguão e sofreu um enfarte. No colo de Tereza, que, aterrorizada, deu a notícia aos correligionários.(I.F)

 

Matéria do jornal O Diário de Pernambuco – 28/09/99.