Glauber no transe da redemocratização

 

Em 1974, a revista Visão resolveu dedicar uma edição especial aos dez anos da “revolução” militar. Estampando na capa, em verde e amarelo, as datas 1964/1974, a revista esclarecia, em editorial de Said Farhat, que o número se dispunha refletir sobre o fato que mudara os rumos da história do Brasil. Mas, na verdade, era mesmo o tom comemorativo que dominava a edição, repleta de elogios aos artífices do novo governo.

Então editor cultural da Visão, o jornalista e escritor Zuenir Ventura foi encarregado de preparar a seção Da ilusão ao poder e a nova esperança, dedicada ao desenvolvimento da cultura brasileira no decênio. Ventura decidiu pedir uma entrevista ao cineasta Glauber Rocha, já um nome reconhecido internacionalmente, que figuraria ao lado do pensamento de artistas e intelectuais como o diretor de teatro José Celso Martinez Correia, o poeta Augusto de Campos e a antropóloga Ruth Cardoso.

Amigo de Glauber, Zuenir sabia qual era o pensamento do cineasta sobre o assunto. Mas Glauber não cumpriu o script, escrevendo uma carta ao invés de responder às perguntas do editor, e o resultado fugiu ao controle tanto do cineasta quanto de Ventura.

A carta de Glauber trazia a influência das idéias de Darcy Ribeiro, que havia vivido um período com os militares nacionalistas do Peru. Em sua estadia no Andes, o antropólogo se convenceu que o único caminho para a redemocratização do Brasil seria o apoio aos militares nacionalistas contra os representantes da “linha-dura”. Glauber também estava informado das referências elogiosas que Miguel Arraes havia feito, em 1971, ao general Ernesto Geisel, então cotado para suceder Médici na presidência. Arraes já sabia que, ao assumir o comando do país, Geisel pretendia dar início ao processo de abertura política.

Assim, em sua carta enviada à Visão, Glauber se desmanchou em adjetivos ao general: “Acho que Geisel tem tudo na mão para fazer do Brasil, um país forte, justo e livre. Estou certo inclusive que os militares são os legítimos representantes do povo. Chegou a hora de reconhecer sem mistificações, moralismos bobocas, a evidência: Costa era quente, frias eram as consciências em transe que não viram pintar as contradições no espelho da história”.

É lógico que a carta de Glauber trazia muito da verve inflamada do cineasta, às vezes muito mais preocupada com a retórica do que com o conteúdo. Mas a esquerda brasileira, não perdoou seu pensamento e Glauber passou a ser o alvo preferencial das “patrulhas ideológicas”. Para João Carlos Teixeira Gomes, autor da biografia Glauber Rocha - esse vulcão, a maior parte da esquerda não entendeu o texto do cineasta, inclusive ironias destiladas contra o general Golbery e seu tratado Geopolítica do Brasil, pelo qual Glauber o chamou de “gênio da raça”.

Os ataques públicos a Glauber se sucederam, partindo até daqueles que o cineasta considerava amigos como o cartunista Jaguar. Em reação, o cineasta radicalizava cada vez mais. No artigo Kultura e censura, publicado em 1978, afirmou: “Geisel não veio para punir mas para libertar o Payz de cinco século de subdesenvolvimento”.

A contenda iniciada pela carta à Visão durou até a sua morte, em 1981. Ao final, já abalado emocionalmente pelas brigas e pela morte trágica da irmã Anecyr Rocha, Glauber se converteu no pai da anistia: “Fui eu que agi fundamentalmente dentro deste país para que se processassem as aberturas políticas a partir de 1972. Não fosse a minha atividade ideológica e cultural não teria havido aberturas. Então eu sou o profeta da anistia”. (Joseana Paganini)

  

Matéria publica em “Anistia de 79, 20 anos”, caderno especial do Jornal de Brasília – Edição de 11/08/99.