Discurso proferido por ocasião da posse na Presidência da Comissão Mista da Anistia, em 2 de agosto de 1979.

 

Honrado pela confiança dos ilustres membros desta Comissão, assumo a sua Presidência. Investido agora, estava há muito designado para o cargo pelo partido a que pertenço. E porque deveria ser o Presidente, chegaram-me, neste mês, convocação de todos os recantos do País. Fui convocado pela investidura que hoje se costuma. Compareci como representante do povo, para ouvir os que pediam para ser ouvidos, dar atenção aos que clamavam por atenção. Chamaram-me em conseqüência da função para a qual me escolheram os meus pares. Distinguiram-me para que pudesse testemunhar. Bateram à minha porta para que pudessem aqui falar pela minha voz. Ao me confiarem as suas esperanças, neste gesto, simbolizavam sua confiança na representação popular, como intérprete legítimo do sentimento nacional. Estive com militares. Avistei-me com funcionários. Visitei operários. Dialoguei com os estudantes. Revelei suas reivindicações. Vou apresentá-las à Comissão.

Não procuraram o Senador pelo Estado de Alagoas. Nem nele identificaram o parlamentar oposicionista. Queriam, apenas, que todos os representantes do povo conhecessem as aspirações da sociedade civil sobre a anistia.

Pleitearei por todos eles. Mas, meu pronunciamento destaca a situação dos encarcerados. Pediram-me para vê-los. E para atendê-los, peregrinei pelo Brasil. Recorreram ao Presidente designado desta Comissão para fazê-lo depoente e referir aos seus iguais sua angústia e tormentos e, ao mesmo tempo, suas esperanças.

Atendi a esses apelos e tenho certeza de ter levado o conforto da minha presença aos que me chamavam. Garanti a todos a compreensão dos homens públicos brasileiros e lhes confirmei a convicção que saberemos honrar a representação que recebemos de um povo animado pelo sentimento da cordialidade, traço saliente da personalidade nacional. Ousei afirmar, falando por todos, que seríamos fiéis à nossa representação e sensíveis aos reclamos da fraternidade e da exigência da pacificação. Pois, entendo que a anistia não é uma questão do Estado, mas um tema que se resolve na sociedade.

Estive em todas as prisões. Freqüentei-as para confirmar juízos e confirmar impressões. Senti, de perto, o drama em que estão envolvidos os que a anistia não alcançou. Estão condenados pela justiça militar por algumas das infrações da Lei de Segurança Nacional. Não negam a autoria nem se eximem das responsabilidades. Captei deles o apelo legítimo. E não ouvi uma palavra de desespero, uma expressão de rebeldia. Sua amargura é a discriminação de que estão sendo vítimas. Apresentaram-me as suas razões, com a serenidade da convicção dos que têm agido, ainda que erradamente, por motivos nobilitantes. Testemunho por eles e asseguro aos meus pares que são culpados de crimes políticos. Seus atos foram políticos, de inspiração e objetivos políticos, não são criminosos comuns. Nem sua situação se pode assemelhar à dos terroristas internacionais. São presos políticos.

Pediram-me para defender perante os representantes do povo a sua causa. É o que faço, desincumbindo-me da missão recebida. A palavra final será ditada pela consciência de cada um. O pleito dos instruídos, dos que correm o risco de envelhecerem no cárcere, está bem entregue. Pois, conhecendo-os e às suas origens, sei que os condenados não purgarão, sozinhos, por erros que são de todos nós.

Já lhes disse entender a anistia como uma questão da sociedade. A ela cabe fixar parâmetros, precisar o seu alcance. Por isso, invocando a autoridade da Presidência para qual estava designado, procurei ouvir os órgãos da sociedade civil. Para tomar-lhe o pulso e oferecer matéria à reflexão dos meus pares. Pois estas organizações se constituem nos canais estruturados para a expressão do pensamento diferenciado dos brasileiros. O juízo que emitem não está contaminado pela paixão política. A tradição secular de algumas lhes veda o sectarismo, o casuísmo partidário e lhes impõe manifestações marcadas pela prudência e a sobriedade. Bati-lhes às portas para que os congressistas tivessem presentes, antes de sua decisão, opinião isenta de instituições representativas da sociedade, e asseguro para orientar uma deliberação. Não sendo especialista, procurei os que sabiam. A relevância do tema, os delicados aspectos políticos e jurídicos envolvidos, impõem-nos a todos envolvidos uma meditação serena para inspirar o voto de cada qual. Nesta matéria não podemos ser partidários, mas acima de tudo representantes. Por isso, as manifestações acumuladas pela sociedade civil, pela incontestável neutralidade política e autoridade na matéria é roteiro seguro para o voto de consciência que devemos proferir.

Começo pela manifestação da Ordem dos Advogados do Brasil. E invoco-a, de início, pela autoridade do seu pronunciamento. Do seu Presidente, Eduardo Seabra Fagundes, solicitei que a instituição falasse. Não ousei traçar-lhe o rumo, mesmo porque a simples insinuação desonraria o Senador e alcançaria o nome da instituição. A opinião dos advogados, por sua representação, é reveladora. E, em sua sessão de 24 de julho, a OAB, pela unanimidade dos seus conselheiros federais, condenou a "mesquinharia das discriminações e ressalvas que apequenam, desfiguram e desqualificam a proposição governamental". Sem discrepância, o Conselho Federal opinou pelo aprimoramento do projeto em vários pontos, pondo em relevo, de início, o injustificável tratamento discriminatório em relação a alguns dos condenados com base na Lei de Segurança Nacional. Essa manifestação, repito, foi colhida sem voto divergente. Todos os conselheiros votaram pela aprovação do parecer do advogado José Paulo Sepúlveda Pertence, relator da matéria, de cujo trabalho destaco, para consideração dos eminentes companheiros, a seguinte passagem: "...se a anistia – pelo seu caráter de objetividade, ínsito no conceito do instituto, que se presume incorporado à Constituição – retroage para retirar a criminalidade de um fato, não é lícito ao legislador ordinário discriminar arbitrariamente entre os seus co-autores, com base em circunstâncias de todo estranhas ao mesmo fato anistiado ou à diversidade de conduta dos seus diversos partícipes. A discriminação desarrazoada, além de politicamente amoral, é ofensa típica do princípio constitucional da igualdade, e há de ser denunciada, para que, se o Congresso não vier a extirpar o despautério do projeto, fique expressa a confiança dos advogados em que os Tribunais o farão.

 

(...)

 

De qualquer sorte, o apelo à universal condenação ética do terrorismo, como justificativo da exclusão questionada, não resiste ao próprio contexto do projeto. É que, além de nada ter a ver o § 2º do art. 1º - pois a exclusão atinge precisamente aos que, já condenados, purgam, há cerca de dez anos, a culpa que tenham tido – o pretexto moral de que se lança mão não pode coexistir seriamente com o § 1º do mesmo dispositivo do projeto.

Não há, com efeito, como aceitarmos – à luz dos valores do Estado de Direito Democrático, que integram o compromisso da Ordem perante a Nação – que a condenação ética do terrorismo sirva para excluir os contestários violentos de uma ditadura dos benefícios da mesma lei de anistia, na qual a mais forte e universal condenação ética da tortura policial não foi óbice à extensão da impunidade legal aos crimes dos que tornaram rotina, no procedimento da repressão aos adversários do regime".

A ABI acompanhou a OAB. O IERJ seguiu-lhes os passos. Os Sindicatos falaram. Alinhados, todos, na crítica ao projeto. E esperam a sua correção pelo Congresso Nacional.

Recolhi depoimentos de juristas. Ouvi professores. Pedi conselho a expoentes da hierarquia religiosa. Nenhum deles com militância política ou vinculado a partido. Para mencionar apenas alguns recolhi a opinião do ilustre Raimundo Faoro, ex-Presidente da OAB, e do cardeal de São Paulo, Evaristo Arns. Aponto-os para lhes agradecer e a todos os demais que contribuíram para o meu esclarecimento. Todos, sem exceção, têm restrições ao projeto. Pretendo, em breve, fazer chegar aos companheiros as suas manifestações. Desde logo, apoiado pela autoridade dos referidos pronunciamentos, creio oportuno pontuar pelo menos a mais grave contradição do projeto.

Estão anistiados todos os líderes políticos punidos desde de 1964. A medida tem o nosso aplauso. De há muito deveriam estar reintegrados à vida nacional, pois têm certamente uma valiosa contribuição a dar, que não pode ser dispensada. A todos a minha efusiva saudação cívica. Com relação a eles, os fatos do passado estão esquecidos. Se entretanto acolho, com entusiasmo, os líderes que voltam, saliento minha perplexidade diante da situação em que o projeto situa alguns de seus liderados, os quais, por estarem condenados, a anistia não alcançará. Foram punidos, porque, de uma forma ou de outra, acompanharam ou rejeitaram a nossa pregação, os caminhos que os líderes apontavam à Nação. A injustiça flagrante clama correção: o esquecimento deve alcançar líderes e liderados, apagando-se da memória social os fatos em que se envolveram. Temos, todos nós, por ação e omissão, estímulo ou incompreensão, responsabilidade dos fatos da história. De alguma forma, participamos da condenação. Advogo o esquecimento. Para que a anistia seja justa, não podemos tomar as contas de ninguém.

Os líderes que se reintegram são os mais velhos. Os deliberadamente esquecidos são os mais novos. Os condenados imolaram o seu futuro e correram o risco definitivo de suas próprias vidas. Pretenderam ser heróis anônimos. O povo não lhes conhece os nomes, nem as faces. Não têm sequer a compensação da glória pública, a notoriedade decorrente do reconhecimento coletivo do sacrifício a que se dispuseram. Escolheram o gesto desesperado, certamente insuficiente e notoriamente ineficiente. Os erros provocados pela impetuosidade dos mais moços merecem a compreensão dos homens que tiveram mais tempo para absorver as lições da vida que sugere moderação aos atores sociais e paciência aos que se dispõem a modificar a sociedade.

A discriminação é indefensável. Eticamente, politicamente e juridicamente. A justificativa da exclusão não convém. Mas o projeto não excluiu os que o regime entende responsáveis pelo terror. Beneficiou alguns para deixar de fora os condenados formalmente. Dois acusados pelo mesmo fato terão o tratamento diametralmente oposto. O condenado seguirá na prisão. O que ainda não foi sentenciado recuperará os seus direitos e não responderá pelo atos praticados. Não há argumento lógico, nem princípio ético que justifique tão odiosa desigualdade. A anistia é uma idéia generosa, um convite à pacificação, um apelo à concórdia. Por essência não pode distinguir arbitrariamente. Se fixar parâmetros, eles hão de ser conscientes, objetivos e justos.

A anistia é um ato político. O seu julgamento para determinar a nossa decisão nos obriga a referir a um padrão ético – e da sociedade – e aos melhores critérios jurídicos. Não há ato político puro, a não ser que se confundam meios e fins e se adote um pragmatismo que justifique os meios empregados pela exaltação dos fins do Poder a alcançar. Indagar a finalidade do ato político é fundamental para a deliberação do Congresso. Anistia é o esquecimento do fato. E estes têm que ser de todo esquecidos. Qualificar os personagens para discriminar alguns dos que participaram igualmente dos mesmos fatos choca a consciência jurídica por desrespeitar o princípio universal da igualdade. E fere a sensibilidade dos que não compreendem os motivos da discriminação.

O Sr. Ministro da Justiça não desconhece a situação de injustiça criada pelo projeto. Mas adianta que tais situações podem ser corrigidas pelo Poder Executivo ou pelo Poder Judiciário. Só ao Congresso, o Poder Político, por excelência, espelho da Nação, no qual todas as correntes se representam, é que não seria admissível a emenda corretiva. Se há injustiça no projeto o nosso dever é aprimorá-lo e pacificar politicamente a sociedade brasileira. Não somos um poder homologatório. Somos um Poder do Estado, com competência e autoridade política para apreciar os projetos do Governo. Por isso, eles nos são submetidos. As vinculações partidárias não podem prevalecer na questão da anistia. A matéria envolve não só a questão de consciência, mas torna imperativa uma reflexão sobre o sentido da representação política e o sentido profundo dos compromissos assumidos, para fixar o papel que, nesta hora, devemos cumprir.

A paz entre os brasileiros através de uma anistia justa, sem discriminação, deve ser o objetivo principal, o ponto de encontro da vontade nacional. Todos seremos vencedores pois a partir dela os alicerces para uma nova fase da vida brasileira começarão a ser fincados.

Não quero dar lição. Reconheço as minhas limitações e as lamento nesta hora. Pois quisera dispor de virtudes que não tenho para convencê-los. Resta-me o apelo que reitero ao finalizar. Dirijo-me, em particular, a cada congressista. Para que esqueçam prevenções e dissenções. A recomposição nacional poderá nascer do gesto generoso da Nação, por seus representantes. A Nação será vitoriosa. Ninguém será derrotado, pois a vitória da Nação não pode ser considerada derrota do Estado.