Senador Teotônio Vilela
Discurso proferido no Congresso Nacional, sessão de 22 de agosto de 1979 |
||
![]() |
Sr. Presidente, Srs. Congressistas: A anistia, antes de tudo, é uma dívida da União, através dos seus poderes constituídos – Executivo, Legislativo e Judiciário – uma dívida contraída com a sociedade brasileira. Esta dívida está sendo hoje cobrada no Congresso Nacional. O Governo resolveu apresentar uma proposta que na nossa avaliação representa 5% do valor da dívida. O MDB se insurgiu, e eu percorri, tanto quanto possível, durante mais de 30 dias, esta Nação em busca de sentir, em busca de calcular e, sobretudo, em busca de decidir. A conclusão hoje, Sr. Presidente, está em que o substitutivo apresentado é pior do que o projeto de anistia do Governo; é iníquo, é imoral e inconstitucional; contraria a eqüidade considerada como o conjunto de princípios imutáveis de justiça, ao abandonar qualquer disposição de reconhecer igualdade, de reconhecer igualmente o direito de cada um; contraria a moral política que o povo brasileiro persegue, abrindo uma doutrina de libertinagem fascista, (Muito bem!) que conspurca os valores essenciais da democracia e o clamor da sociedade; contraria a Constituição, desde que o seu art. 1º, fere o princípio da isonomia, segundo o qual "todos são iguais perante a lei". Esta Casa, salvo disposição em contrário, é para fazer leis, e se a lei é uma regra de Direito e se Direito é o conjunto de normas jurídicas que disciplinam as relações dos homens em sociedade de modo algum a lei pode sei iníqua, imoral e inconstitucional. (Muito bem! Palmas.) A menos, Sr. Presidente, que o Legislativo, sob o império do arbítrio, tencione cobrir-se, mais uma vez, do opróbio de sua incoercível sujeição aos amavios do poder. A anistia é o reencontro da Nação consigo mesma; depois de tantos erros e animosidades, procura-se, pelo esquecimento dos fatos, restabelecer, através da respeitabilidade da lei, a convivência dos homens desavindos em torno dos altos interesses que consolidam a unidade nacional. Anistia, por isso mesmo, não é uma concessão à divergência; ela não se faz apesar da divergência, a título de graça. Ao contrário, busca-se a anistia não "apesar", mas "por causa" das divergências. Entretanto o que está em votação não é um reconhecimento de divergências, legítimas em qualquer sociedade livre organizada ou que se quer organizar, mas uma demonstração nítida de poder tutelar que, podendo tudo, resolve fazer do clamor nacional pela anistia uma manobra equívoca de reabastecimento de força. O Governo trai a Nação duplamente: primeiro porque anuncia uma coisa e apresenta outra; segundo, porque em vez de unir, desune. (Palmas.) Os efeitos reais do substitutivo ora em votação são irrisórios, além de nos impor um pacto de injustiça ao excluir tiranicamente 95% dos que têm direitos lesados por motivação política. Numa situação política anormal, como a nossa, segundo a definição do ex-Presidente Geisel, um projeto de anistia só pode produzir efeitos se concebido nos termos do substitutivo apresentado pelo MDB, ou seja, que trate ao mesmo tempo do direito substantivo e do direito adjetivo. Do que vale o direito de fundo sem a forma processual, numa situação de poder dominante, em que a lei é um joguete nas mãos de qualquer autoridade. Aqui está a sentença do juiz auditor de Salvador concernente ao pedido de liberdade condicional a que tinha direito o preso político em fuga Theodomiro dos Santos. Chega-me a denúncia de desaparecidos políticos na verdade mortos e sepultados como indigentes, segundo casos apurados, mediante o expediente criminoso de que portavam identidades diferentes, isto é, falsas, sabendo as autoridades da gravidade dos seus atos. Com isso, sonegava-se à família dos desaparecidos a sua morte, o local de seu sepultamento e o atestado de óbito. Aí está a atual Lei de Segurança Nacional, que reduziu penas em relação às penas da anterior, e não se acata a adequação. A maioria dos presos políticos, se cumprida a adequação de penas, estaria com direito líquido e certo à liberdade condicional ou à simples libertação total. Mas a lei não é cumprida, graças ao arbítrio reinante. Aí está a Constituição que obriga os nossos consulados a registrarem os filhos de brasileiros nascidos no exterior, como os obriga a fornecer passaporte – e nada disso é levado em consideração. E que lei temos, afinal, a nos reger politicamente? É uma falácia admitir que numa situação política anormal venha a imperar a normalidade institucional capaz de realizar os efeitos desejados pela Nação. Promove-se uma vasta publicidade, mas com reais objetivos diferentes daqueles que o instituto da anistia deveria produzir. Por isso mesmo, não é difícil uma análise de valor e de eficiência do que nos é proposto como anistia que apenas exclui, no dizer dos governantes, os terroristas, ou seja, segundo a doutrina da Lei de Segurança Nacional, os que cometeram crime de sangue, crime contra a humanidade. É bom acabar de uma vez com essa exploração de crime de sangue atribuído exclusivamente aos que combateram contra a situação de poder dominante, como se num estado de beligerância ou num estado de guerra como quer a doutrina da Escola Superior de Guerra, que caracterizou o período iniciado com a partida do General Mourão, de Juiz de Fora, e encerrado até a liquidação dos focos de luta armada em contraposição à iniciativa mineira, só houvesse sangue no corpo dos que morreram de um lado e do outro não. Parece-me que Vladimir Herzog, Mandel Fiel Filho, os que caíram no Araguaia, nas ruas, em tantos cárceres – não eram desprovidos de condições humanas. Ou eram entes de outro planeta? Toda revolução proporciona crimes contra a humanidade, e aqui não vale a pena registrar o detalhe se é de caráter interno ou envolve outras nações. Dizer que o movimento de 31 de março de 64, como todos os seu similares no passado, decorreu de forma incruenta é escarnecer dos mortos. E se houve morte de parte a parte, houve sangue de parte a parte. A substância profunda da anistia está exatamente em reconciliar a Nação, esquecendo os fatos tristemente ocorridos num momento de desequilíbrio histórico do sentimento nacional. Cumpre à União, cessada a violência, independentemente de quem tinha ou não razão, promover o esquecimento das animosidades, o que só é possível, com o esquecimento dos erros. E quem julga da oportunidade e da extensão da anistia é a sociedade. Pois se os poderes da União existem, existem tão-somente para servir aos bens coletivos – e nenhum bem é mais importanto no atual processo evolutivo da civilização brasileira do que o da restauração da dignidade da lei, como regra de direito, se quer fazer deste País uma democracia. A sociedade clama por anistia ampla, geral e irrestrita. Aqui estão 43 documentos das entidades mais representativas do nosso organismo social. Todos condenam o projeto do Governo e o repudiam. Repudiam-no os presos políticos, que, além da palavra expressa, expressam o sacrifício do seu único bem no cárcere – a vida de sobreviventes do apocalipse da tortura. Repudiam-no os servidores civis e militares atingidos pela repressão; repudiam-no os comitês de exilados; repudiam-no os operários, mais de 12.000, e os estudantes, mais de 3.000; repudiam-no agora os familiares de desaparecidos ao descobrirem que a aceitação da "morte presumida" é apenas uma forma de evitar que prossigam as pesquisas de averiguação da farsa quanto ao seu paradeiro real. Restam aqueles que, realmente, embora em número reduzido, serão beneficiados. O povo os saúda, pois ao povo e ao MDB devem histórica e substancialmente o pagamento da pequena parcela de dívida que a União lhes deve, e não vejo necessidade de agradecer ao Governo, tributando-lhe a homenagem do meu voto. É preciso perceber que o Governo não tinha mais por onde fugir, acossado pela sociedade. É de se louvar, se possível fosse, a mesquinharia inteligentemente ardilosa com que se decidiu a enfrentar o crescente pregão social pela anistia. Da queda imposta, resolveu, como no samba, sacudir a poeira e passar a perna por cima. Não dá anistia, serve-se da anistia. Esse jogo, evidentemente, tinha que ter um preço. Então haverá, sem dúvida, o benefício a algumas pessoas. Operários, quando lhes falava há poucos dias, em São Bernardo do Campo, definiram a anistia do Governo como simplesmente elitista. Elitista ou não, é reduzidíssima; e, mais do que isso, a anistia é o alicerce fundamental da democracia relativa. Pelo seu tamanho, pela sua iniqüidade, pela sua imoralidade e pela sua inconstitucionalidade – pode-se medir e verificar a qualidade de vida democrática que o Governo imagina para o povo. Os honrados donos do poder fazem o que podem – e, na verdade, seria de estranhar que fizessem diferente. Não podia ser de outra forma, porque essa é forma segundo a qual monta-se a toda uma estratégia de poder, que às custas de publicidade deve ser democrática mas à luz da realidade vai-se constituindo na doutrina fascista de perpetuação de 30 ou 40 homens na redoma do poder, como salientou em crônica recente o poeta Carols Drummond de Andrade, condenando a mentira estatística de que somos 120 milhões de brasileiros. Em cima da anistia, vai-se montar a tal reforma partidária, com os mesmos defeitos e crueldades, em cima à reforma eleitoral. E se tudo funcionar dentro do esquema da democracia relativa, orientada e programada pelo trilateralismo, podemos até chegar a uma constituinte. A ousadia é infernal. Mas isso é que está no bojo do projeto de anistia. Pau que nasce torto, tarde ou nunca se endireita. A anistia iníqua, imoral e inconstitucional nem sequer é uma anistia inversa, lembrada por Rui Barbosa, é simplesmente perversa.. E perversa sobretudo porque anistia crimes eleitorais, pretende anistiar torturadores, anistia quem se exilou ou foi banido, mas mantém os cárceres, pelos mesmos delitos, jovens envelhecidos e de saúde irremediavelmente comprometida, depois de oito, nove e dez anos de sofrimentos atrozes, experimentados como bichos em tipos de violência que nem a História e nem a literatura de ficção tinham até hoje registrado ou concebido. Eu jamais supus que no Brasil essas coisas pudessem acontecer. Em vez de um juramento de paz, prolonga-se a guerra de erros e animosidades. E a opinião pública brasileira está ciente e consciente disso. Pode o Governo capciosamente manipular os números que entender para suas estatísticas – a verdade subiu à tona, é do conhecimento geral. Assuma, portanto, a responsabilidade da injustiça que pratica o ônus político de suas conseqüências. Mas assuma ainda a gravidade a que expõe o País, e não venha dizer amanhã que a Oposição lhe negou apoio. Nego-lhe apoio à iniqüidade, à imoralidade e à inconstitucionalidade, porque o parlamentar também tem a sua fé de ofício, procurou a Oposição prestar ao Governo, no seu todo, a colaboração de pesquisar a realidade que está do outro lado do formalismo oficial, que eu próprio, desconhecendo sua extensão, tenho o direito de pensar que outros também o ignorassem ao menos na sua extrema hediondez, e em vista disso houvesse um mínimo de entendimento através do qual se pudesse vencer obstáculos na busca patriótica da paz cívica. O futuro não vai esquecer o erro de não termos tido capacidade de esquecer o passado. Que fique o Governo com a responsabilidade de desunir a Nação. (Palmas.) Que fique o Governo com o direito – e eu lhe concedo esse direito – de assumir as conseqüências do caos. E não venha dizer amanhã, que foi a Oposição. A Oposição procurou, de V. Exª a todas as lideranças, meios de um entendimento. Tudo nos foi negado, até a humildade honrada de pedir para insistir. Está selado o destino. Os jornais hoje publicam. Não havia necessidade mais desse formalismo. (Muito bem!) E além, Sr. Presidente, de já haver essa distinção de preferência, ainda acharam pouco. Criaram uma voz mais grossa e mais elevada do a voz do Sr. Relator, a voz das bombas que ontem vieram atingir-nos na porta do Congresso Nacional. E não precisava, Sr. Presidente, não precisava, de maneira nenhuma, de votação. Bastam os pelotões que lotam as galerias. Estas são as circunstâncias, Srs. Congressistas, em que estamos votando. Peço ao Congresso Nacional que promova a rebelião das consciências, antes que venha a rebelião das massas. (Muito bem! Palmas.) |
|