Um homem sem preço

 

                                                                           Emiliano José

 

No dia 5 deste mês de julho de 1999, Rabelo partiu para uma terra desconhecida. A humanidade perdeu um homem bom. Parece pouco dizer assim. É que nos desacostumamos com a grandeza dos homens bons. Em tempos de acesa competitividade, é possível sugerir que eles não são necessários. Estes, no entanto, é que serão sempre lembrados. E com imensa saudade, com infinita ternura, com incomensurável carinho, como me lembro agora de Rabelo que, indo embora, deixou o mundo mais pobre porque menos alegre. Persiste na minha memória o quase permanente sorriso, a brandura nos gestos, a calma diante das situações difíceis, que eu conheci mais de perto na “Penitenciária Lemos de Brito”, em Salvador, no início dos anos 70.

Antônio Rabelo nasceu em São Gotardo, nas Minas Gerais, em 17 de setembro de 1934. Foi tentar Medicina em Belo Horizonte, mas antes que passasse no vestibular, envolveu-se com Betinho e demais militantes que fundaram a organização revolucionária Ação Popular (AP), da qual foi um dos pioneiros. De Belo Horizonte segue para Trindade, cidade próxima a Goiânia, onde, para ganhar a vida, trabalha como laboratorista, sem deixar a militância, já casado com Anete, com quem terá três filhos. O golpe o surpreenderá em Goiânia, e em 1967 será obrigado a cair na clandestinidade, já na condição de um dos dirigentes da AP.

Em 1970 vem para Salvador como dirigente regional da AP. Os núcleo de direção  da AP na Bahia era constituído por  Joaquim, Neco e Josué. Parece zaga do Bahia, mas não é. Neco era José Carlos Arruti Rey, ainda vivendo na Bahia, ex-superintendente do Incra no Estado. Josué era Tibério Canuto de Queiroz Portela, hoje em São Paulo. E Joaquim era Rabelo, o mais experiente dos três. Em 1971, Rabelo é preso, e mais Anete, Tibério, José Carlos Zanetti e tantos outros. Eu já estava preso, e era também da AP. Junto com Rabelo e Anete, são presos também, isso mesmo, os três filhos deles – Igor, André e Marcos, com cinco, quatro e três anos respectivamente.

Ele foi submetido a inomináveis, cruéis torturas – do pau-de-arara ao choque elétrico – comandadas pelo capitão Nogueira e pelo major Leopoldino, principalmente no Quartel de Amaralina. Por tudo isso, perdeu parte da audição. O pior de todos os sofrimentos, no entanto,  para ele e Anete, foi o  de assistir aos filhos serem ameaçados de tortura várias vezes. São as monstruosidades daquele tempo, que contadas hoje parecem ficção.  Eu insisto  que nós revelamos apenas  uma pequena parte das atrocidades da ditadura, e que a memória coletiva apaga muito fácil esse tempo de horrores e lamentavelmente reconstrói a biografia dos homens que o construíram direta ou indiretamente. Depois de tudo isso, Rabelo e Anete passaram a cumprir pena, e foi quando, na “Lemos de Brito”, convivi mais de perto com ele.

Era dos mais velhos dentre nós. Talvez, na idade, se aproximasse de Magno Burgos, outro dos poucos veteranos. Era também a voz serena, o equilíbrio, a capacidade de unir sem falar muito, como que a nos educar pelo exemplo. No nosso meio, ele semeava concórdia, tinha uma enorme capacidade de transigir, o que não era pouco naquele tempo. Era, insista-se, um homem bom, desses que conscientemente colocam a vida a serviço de uma boa causa sem precisar esforçar-se para tanto. E um homem de coragem, o que  as próprias circunstâncias da época evidenciavam.

Ainda preso, cumpriu parte da pena em Goiânia, onde ele e Anete passaram a viver depois. Foi secretário de Promoção Social no governo Henrique Santillo e ocupou ainda outros cargos públicos, sempre com imensa dignidade, sem uma única mancha em sua reputação de homem honesto e fiel aos seus princípios. Ao escrever este texto, emocionado, mando um abraço a Anete, a Igor, a André e a Marcos, tendo a certeza de que o faço em nome de tantos outros companheiros de prisão e de luta, alguns dos quais me pediram que o fizesse porque tomaram conhecimento da partida, como Zanetti, Carlos Sarno, Denilson Vasconcelos, Olderico Campos Barreto. Apesar da dor da morte, Anete e os filhos  certamente têm a consciência de ter tido um marido e um pai de quem podem se orgulhar, no qual podem se espelhar. Ele deixou plantadas as sementes da honradez, da dignidade, da coragem, da ousadia serena. Deixou o exemplo dos homens que não têm preço, essencial nesses tempos de predomínio quase absoluto das regras de mercado, quando se tenta fazer crer que tudo tem um valor monetário. Rabelo, com o exemplo de sua vida, provou que não.  

 emiljose@uol.com.br